Nossos Senhores, os Pobres

No final do filme “Vicente de Paulo – Capelão das galeras” aparece uma cena impressionante. Vicente de Paulo, em seus momentos finais de vida, depara-se com uma jovem Filha da Caridade que está prestes a ser enviada para a missão juntos aos Pobres. Vicente de Paulo, mais que um conselho, expõe um entendimento da mais profunda espiritualidade das pessoas que se colocam a serviço dos Pobres. Diz ele para aquela Filha da Caridade: “Joana, logo verás quanto é pesada a caridade, muito mais pesada que o caldeirão da sopa e a cesta cheia de pão... Tu, porém, conservarás a tua doçura e o teu sorriso. A caridade não consiste tanto em distribuir a sopa e o pão. Isso os ricos podem fazê-lo. Tu serás a pequena serva dos Pobres... Sempre sorridente e de bom humor. Eles são teus senhores, senhores terrivelmente sensíveis e exigentes, tu o verás. Porém, quanto mais repugnantes forem, quanto mais sujos estiverem, mais injustos e grosseiros parecem, tanto mais deverás dar-lhes o teu amor! Te perdoarão os Pobres o pão que lhes dás!”.

De fato, Vicente de Paulo considerava os Pobres como senhores e mestres: “Deus ama os Pobres e, por consequência, ama aqueles que amam os Pobres; pois, quando se ama alguém, tem-se amizade por seus amigos e por seus servos. Ora, preciso empenhar-se com afeição a serviço dos Pobres, que são os bem-amados de Deus; e assim nós temos razão de esperar que, por amor Deles, Deus nos amará. Vamos, pois, meus irmãos! E nos empenhemos com um novo amor em servir os Pobres e inclusive procuremos os mais Pobres e os mais abandonados; reconheçamos diante de Deus estes são nossos senhores e nossos mestres, e que nós somos indignos de lhes prestar nossos pequenos serviços”.

Em todo mundo, uma característica comum à grande maioria dos países é o aumento da pobreza e da miséria. A pobreza continua crescendo e assola bilhões de pessoas. Esta realidade de injustiça afronta os direitos humanos essenciais, e mesmo pessoas que são sensíveis a esse problema acabam habituando-se a conviver no dia a dia com uma multidão de homens e mulheres em situação de rua, crianças que não possuem garantias quanto ao seu bem-estar e desenvolvimento humano, pessoas doentes que acabam morrendo sem ter sequer um atendimento de pronto-socorro. A desigualdade tornou-se endêmica. No Brasil, há mais de 50 anos, muitas pessoas ligadas à Igreja empenham-se em denunciar as causas de tamanho desrespeito com o ser humano. A própria Teologia da Libertação sempre insistiuque o própria fato de existirem pessoas empobrecidas e injustiçadas é uma negação de Deus e do amor divino que destina a terra, a água, o ar e todos os bens da vida a todos. Esse foi também o pensamento e a espiritualidade de São Vicente de Paulo. Com a Espiritualidade Vicentina e com os elementos básicos da Teologia da Libertação, aprendemos a seguir Jesus Cristo no testemunho do Reino de Deus, por meio da “comunhão com os Pobres e contra a pobreza”. A Pobreza em si mesma é injusta e nunca pode ser legitimada. Como Vicente de Paulo que dizia que “será com os Pobres que libertaremos os Pobres”, assim também a Teologia da Libertação acredita que “só o oprimido pode libertar o oprimido”. A verdadeira libertação só acontece quando o próprio povo empobrecido torna-se sujeito de sua libertação, por isso, o combate à pobreza injusta se dá a partir de inserção e comunhão com os empobrecidos.  Por isso, os serviços que se prestam ao Pobre devem ser feitos com qualidade. A qualidade, a competência, a ternura e o respeito devem ser características existentes em qualquer serviço e projeto. Tanto São Vicente de Paulo e Santa Luísa de Marillac, como mais tarde o beato Frederico Ozanam e Santa Elizabeth Anne Seton insistiram em que os serviços fossem bem feitos, com recursos adequados, com determinação e afeto. Santa Luísa, sendo a pessoa prática que sempre foi, dava instruções muito pormenorizadas sobre como realizar as tarefas, insistindo em que se agisse sempre com ternura: “Acima de tudo sede muito educadas e amáveis com os vossos Pobres; sabeis muito bem que eles são nossos mestres e devemos amá-los com ternura e com grande respeito. Não basta que recordemos estas regras, devemos mostrá-las através de uma atenção muito amorosa e caridosa. Somos destinadas a isto, por nossa forma de viver e nossa profissão... Ao servir os Pobres tereis que ter os olhos somente em Deus. Não deveis ser demasiadamente pacientes e nem muito condescendentes com eles quando se recusarem a tomar os remédios ou quando forem insolentes; porém, deveis ser muito cuidadosas em não mostrar ressentimento ou desprezo em vossa atitude para com eles. Ao contrário, tratai os enfermos com respeito e humildade, recordando que toda atitude rude e de desprezo, assim como todo serviço e honra que lhes prestais, vão dirigidos ao próprio Nosso Senhor”.

 

Padre Mizael Donizetti Poggioli (Congregação da Missão-CM)

Assessor Espiritual do Conselho Metropolitano de São Paulo (SP)