Redescobrindo a “face” de Deus na Espiritualidade Vicentina

Por meio de São Vicente de Paulo nos chega uma herança preciosa, herança que nos coloca cara a cara com Jesus Cristo, o Evangelizador e Servidor dos Pobres, e com Sua proposta. Jesus, contemplado por São Vicente de Paulo, revela-nos a face de um Deus misericordioso que se põe à disposição do seu povo sofrido; que é escravo, que é doente, que é pobre, que é oprimido e que é marginalizado.

É interessante analisar a experiência de fé de São Vicente de Paulo do ponto de vista da transformação que qualquer ser humano pode passar quando tem uma vida de intimidade com Deus. É no decorrer de sua experiência de vida que ele se deixa moldar pelas mãos do Senhor; ainda que não tenha a clara consciência da ação do Espírito que lhe revela a maravilhosa face de um Deus que do mais profundo de sua misericórdia e compaixão se faz serviço, se faz entrega e doação a nós; estendendo seus braços para abraçar a humanidade no mais profundo de seu sofrimento. É em Jesus Cristo que Deus chega ao máximo do seu amor e nos revela seu rosto. Jesus é a maior expressão da revelação divina, ponto culminante da retirada do véu que até então distanciava a humanidade das pisadas de Deus na terra por conta das nossas transgressões.

Vicente de Paulo, que não nasceu santo, fez a experiência de Deus. Aos poucos aprendeu a contemplá-Lo e a compreendê-Lo como Deus encarnado na humanidade; não só o Deus encarnado, mas o Deus que assumiu as dores, misérias e mazelas da humanidade inteira, para redimi-la e salvá-la do mal; sendo o primeiro protagonista de um mundo novo, no qual o divino tem o poder de humanizá-lo e o humano pode ser divinizado na dignidade que Jesus veio devolver ao gênero humano.

Em uma época de miséria, de enfermidades, de fome e de guerra, Vicente de Paulo fez o movimento de saída de si mesmo, aprendeu a esvaziar-se de suas vontades e de seu querer para encher-se do Deus de Jesus Cristo que é um Deus que se dá gratuitamente, fazendo-se Deus-serviço no seu Filho por Vicente contemplado.

A conversão, a verdadeira transformação vivida por Vicente que antes pensava mais em si mesmo e em sua família, passa por uma via espiritual que nos ajuda a compreender o desapego daquilo que pode, somente, favorecer a nós mesmos para viver na dinâmica da lógica de Jesus, que é a lógica da entrega total aos que mais precisam. Neste sentido, a espiritualidade de Vicente que constitui hoje para nós, seus filhos e filhas, a espiritualidade vicentina, é um convite para tirarmos o véu da face do Deus que projetamos a partir dos nossos interesses pessoais para vislumbrar a face de um Deus que nos coloca no movimento da entrega e da doação ao próximo. Porém, não é um movimento que nos coloca em relação com o “próximo com quem queremos estar”. Esta espiritualidade nos ajuda a contemplar o rosto de Deus no sofrimento, na dor, na pobreza, na pequenez, na humilhação e no pranto dos miseráveis.

Foi a partir do seu contato com o Pobre que Vicente de Paulo começou a ter mais clareza a respeito da vontade que Deus tinha para a sua vida e do grande projeto de transformação que Deus tem para o mundo: transformá-lo no seu Reino. Foi a partir daí que começou a contemplar a Jesus Cristo como aquele que soube servir e que servia aos que mais necessitavam. Vicente de Paulo redescobriu a face de Deus e nesta redescoberta pôde encontrar o sentido de sua existência, enquanto homem de fé e enquanto presbítero.

A espiritualidade vicentina é uma fonte riquíssima para ajudar-nos a redescobrir a face de Deus e a compreender o que Ele quer de nós. Ao nos deixarmos tocar por Ele, ao permitir que seu Espírito nos dirija, poderemos nos aprofundar mais e mais na riqueza do serviço e assim daremos fé, razão e sentido naquilo que somos enviados a fazer: evangelizar os Pobres, pregar a liberdade aos cativos, curar doentes, dar vista aos cegos, retirar o peso opressor que recai sobre o oprimido e anunciar o Reino de Deus (cf. Lc 4, 16-19).

A espiritualidade vicentina nos coloca em contato com Deus não para o simples gozo espiritual e a obtenção do céu como recompensa. Na verdade, ela nos liberta para a ação evangelizadora de transformar o mundo, de semear o Reino e de resgatar valores como a partilha, a fraternidade, a sadia relação interpessoal na qual nos tratamos como iguais e sabemos ajudar uns aos outros. O Deus que Vicente de Paulo contemplou em seu processo de amadurecimento da fé lhe revelou a profundidade de um Deus que é misericórdia, como nos diz em sua conferência do dia 6 de agosto de 1656: “Quando visitarmos os pobres, devemos entrar nos seus sentimentos para poder sofrer com eles e ter a mentalidade do grande apóstolo que disse: “Eu me tornei tudo para todos”. Então, não é para nós a queixa que o Senhor fez antigamente por meio de um profeta: “Esperei para ver se alguém podia participar do meu sofrimento, mas não houve ninguém”. Por isso, nós devemos tentar fazer os nossos corações sensíveis e receptíveis para o sofrimento e para a miséria do Pobre.

Peçamos a Deus que Ele nos dê o verdadeiro espírito de Misericórdia, que é o espírito próprio de Deus. Pois, como a Igreja diz, o próprio de Deus é mostrar misericórdia e dar dela o espírito”.

A espiritualidade vicentina nos revela a face misericordiosa de Deus e nos torna misericordiosos para com os nossos irmãos e irmãs, ajudando-nos a que nos inclinemos para ver e ouvir suas dores e clamores, para abraçá-los em estado de compaixão; participando no mais profundo do seu sofrimento, propondo-lhes novas alternativas; saídas novas permeadas de esperança.

 

Padre Denilson Matias (Congregação da Missão)